Para os sem namorado
Fabrício Carpinejar
Especial para O POVO
Perdi a chave de casa. A argola estava solta do molho, mas não tomei nenhuma iniciativa de contenção de portas em meu bolso. Deixei que a sorte me favorecesse.
Ao chegar ao apartamento, de noite, sem ninguém para atender, não localizo a chave. Procuro e procuro pelo casaco, calça e fechos da bolsa. Reconstituo o trajeto de costas, aliso o chão, cavo a neblina. Desesperado como um esquilo comendo. Os braços são joelhos brincando de morto-vivo. Não havia como me concentrar. Sempre que altero o esconderijo, me comprometo com um novo arranjo de dicas. Restava aguardar que alguém viesse mais cedo, sentar na portaria como um refugiado de enchente e continuar mentalizando: "onde diabos botei a coisa?" Tudo perde o nome e se transforma em coisa quando perco.
No extravio, somos obsessivos. Não trocamos de raciocínio, não deslocamos as visões, não conseguimos mais fazer o que tínhamos para fazer até resolver aquilo. Um breve lapso, e as conexões da rotina se interrompem bruscamente.
Doloroso foi o dia seguinte. Infernizar a agenda, mudar a fechadura, receber o homenzinho com as ferramentas, duplicar as cópias, entregar para a babá e dormir com a lição de que a pressa me envelheceu.
Novamente tranqüilo (castigo pago com juros), vou guardar a japona e apalpo um objeto pontiagudo no forro. Vejo que o bolso está descosturado no canto esquerdo. Agora que não preciso mais, recuperei a chave, com seus dentes rindo de escárnio.
É sempre assim.
A única vez em que dirigi sem carteira (ficou na cômoda e era tarde para retornar), fui parado por uma blitz. A primeira da minha vida, justo no momento em que não carregava o documento. Tenho o presságio de que a Polícia Rodoviária possui um radar de pânico dos motoristas. Os guardas enxergaram meu batimento fora do normal, e pediram para encostar. Apreenderam o veículo, e debocharam da minha verdade como se fosse uma mentira mal contada.
O encalhado quando caça também não acha seu par. Não é por ausência de vontade, talvez seja o excesso, a ansiedade, a pressão em resolver sua vida naquele instante daquele jeito (Encalhado mesmo é aquele que consulta a data de validade da camisinha).
Sente-se duplamente negado: por si e pelos outros. Parte da concepção de que os outros estão informados de sua abstinência e jejum. E o terrível é que a maioria realmente desconfia. O encalhado respira a falta de sexo, já pede desculpas com as sobrancelhas. Subentende que é um fracassado, camuflando o estigma da mão solitária com a protuberância de anéis. Desabafa no mais sutil cumprimento. Age como eu farejando a chave ou fugindo do policiamento. Com idéias fixas. Modelando a memória para diminuir a culpa. Censurando-se por ter perdido algo (sua idade, sua fantasia, sua ingenuidade).
Não dançará à vontade ou participará de discussões, tão coagido a eleger sua cara-metade. Não irá se divertir; converteu o namoro num pré-requisito do prazer. O encalhado não conversa, investiga. Não flerta, conduz entrevistas de candidatos. Pergunta o que exigiria anos de observação. Encurralado pela falta de tempo que é ter todo o tempo do mundo.
Aos amantes solteiros, pense em mim no Dia dos Namorados antes de chorar emprestado. Ao desistirem de procurar, é certo que vão encontrar.
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de Um terno de pássaros ao sul (Bertrand Brasil, 2008) e Diário de um apaixonado (Mercuryo Jovem, 2008).